Por Ana Paula Rios
1. O Tempo que não conta, mas constrói.
Quantas vezes ouvimos que “ser dona de casa não é trabalho”?
Quantas vezes o cuidado foi tratado como dever natural da mulher, e não como o que
realmente é, um trabalho essencial, contínuo e indispensável à vida?
A verdade é que, por trás de uma sociedade produtiva, há milhões de mulheres que
sustentam o cotidiano com o tempo que dedicam ao outro. São mães, filhas, esposas e
avós que cuidam de crianças, idosos e pessoas com deficiência.
Elas alimentam, educam, organizam, protegem, mas, paradoxalmente, esse tempo de
cuidado não é reconhecido como tempo de contribuição pelo sistema previdenciário
brasileiro.
O resultado é cruel: muitas mulheres chegam à maturidade sem proteção previdenciária,
mesmo tendo trabalhado uma vida inteira, só que em casa.
E é nesse ponto que o Direito precisa ser repensado sob uma nova ótica: a do
reconhecimento do cuidado como trabalho socialmente relevante.
2. A Previdência e o olhar masculino sobre o trabalho
A estrutura da Previdência Social brasileira foi pensada, historicamente, para um
modelo de trabalhador homem, formal, com emprego fixo e remuneração mensal.
Esse paradigma ignora a realidade feminina, marcada por interrupções de carreira,
trabalho informal e, sobretudo, pelo cuidado não remunerado.
Pesquisas do IBGE em 2019, mostraram que as mulheres dedicaram, em média, o dobro
do tempo dos homens às tarefas domésticas e de cuidado, elas empregaram 21,4 horas
por semana, enquanto eles destinaram 11 horas semanais, e esse é um dos fatores
centrais da desigualdade previdenciária.
Mesmo com avanços legais, o sistema ainda parte do pressuposto de que só “trabalha”
quem tem vínculo empregatício.
Mas o cuidado também produz valor.
Ele garante o funcionamento da sociedade, viabiliza que outros trabalhem fora e tem
impacto direto na economia. Ainda assim, é invisível nas estatísticas e no cálculo dos
benefícios previdenciários.
Como juristas e cidadãs, precisamos refletir: um sistema que desconsidera o tempo de
cuidado das mulheres é verdadeiramente justo?
3. Quando o cuidado vira direito: o papel da contribuição facultativa
Apesar dessa lacuna histórica, a legislação previdenciária reconhece uma importante
alternativa:
as mulheres que se dedicam exclusivamente ao lar podem contribuir para o INSS como
seguradas facultativas, transformando o tempo de cuidado em tempo de proteção social.
Essa contribuição pode ser feita mensalmente, pelo carnê de pagamento (GPS) ou pelo
aplicativo “Meu INSS”.
Existem três modalidades principais:
Plano Normal (20%) — contribuição sobre o salário escolhido (entre o mínimo e o teto
do INSS), com direito a todos os benifícios do INSS.
Plano Simplificado (11%) — contribuição sobre o salário mínimo, com direito à
aposentadoria por idade e os demais benefícios previdenciários, como benefícios por
incapacidade, Salário- Maternidade, auxílio-acidenta, e auxílo reclusão e pensão por
morte aos seu dependentes.
Plano de Baixa Renda (5%) — destinado a mulheres sem renda própria, inscritas no
CadÚnico, que se dedicam exclusivamente ao lar.
Com essas contribuições, a dona de casa garante acesso à aposentadoria, salário-
maternidade, auxílio-doença e pensão por morte para seus dependentes.
Mais do que um pagamento, é um ato de empoderamento jurídico e financeiro, o
reconhecimento, em forma de direito, de que cuidar também é trabalhar.
4. O Desafio do Reconhecimento: por uma Previdência com Rosto Feminino
Ainda que o sistema permita a contribuição facultativa, é importante reconhecer que
isso transfere para a própria mulher o ônus de financiar sua proteção, sem que o Estado
valorize, de forma efetiva, o cuidado como função social.
O problema, portanto, não é apenas de informação, mas de justiça estrutural.
Em muitos países europeus, políticas de “créditos previdenciários por cuidado” já
consideram o tempo dedicado à criação dos filhos ou à assistência familiar como tempo
de contribuição para aposentadoria.
No Brasil, esse debate precisa avançar, e ele passa necessariamente pela presença
feminina nos espaços de decisão: magistradas, advogadas, promotoras e legisladoras
que compreendem, na prática, o impacto do cuidado invisível.
O Direito Previdenciário precisa incorporar o olhar feminino sobre o tempo,
reconhecendo que cuidar é também participar da vida econômica e social do país.
5. Conclusão: Cuidar de si é também um ato de amor
Enquanto esse reconhecimento integral não chega, é fundamental que cada mulher
saiba:
mesmo dedicando-se exclusivamente ao lar, ela tem o direito de se proteger e garantir
um futuro digno através da contribuição facultativa.
Informação é poder, e quando uma mulher entende seus direitos, ela muda a própria
história.
Cuidar dos outros é um gesto de amor; cuidar de si é um gesto de liberdade.
E o Direito, quando reconhece o cuidado, deixa de ser apenas norma, e se torna justiça
em sua forma mais humana.
Que possamos, como mulheres do Direito, seguir unidas para construir um sistema
previdenciário mais justo, inclusivo e sensível às realidades femininas, onde o tempo de
cuidar também conte, e conte muito.
Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei no 8.213/1991 — Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência
Social.
IBGE. Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Rio de
Janeiro, 2019.
JANKOWSKI, Jonh. Social Security Bulletin. Créditos para cuidadores na França,
Alemanha e Suécia: Lições para os Estados Unidos. Boletim da Previdência Social.
Vol.71, no 4, 2011, (publicado em novembro de 2011.
Sobre a Autora
Ana Paula Rios é Advogada Especialista em Direito Previdenciário, Palestrante e
Escritora.
Atua na defesa dos direitos previdenciários de brasileiros no Brasil e no exterior, com
foco em planejamento e proteção social.
