Por Kátia Padovani
O Agosto Lilás, mês de mobilização pelo enfrentamento da violência contra a mulher, convoca-nos a refletir sobre uma dimensão muitas vezes invisibilizada: a dependência econômica como fator determinante na perpetuação da violência doméstica.
Para muitas mulheres, esta questão impõe um dilema paralisante e invisível aos olhos da sociedade: como abandonar um lar violento sem ter para onde ir ou como sustentar a si mesma e aos seus filhos? A falta de autonomia financeira cria um ciclo vicioso onde o medo da miséria se sobrepõe ao medo da agressão. A vítima é forçada a calcular os riscos, e muitas vezes a permanência na relação abusiva parece ser a única via para garantir a sobrevivência material. Compreender esta dinâmica é fundamental para perceber por que tantas mulheres não quebram o silêncio.
No Brasil, o cenário da violência contra a mulher é alarmante. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024 revelou que cerca de 1.238.208 mulheres foram vítimas de algum tipo de violência em 2023, evidenciando a persistência desse fenômeno estrutural (FBSP, 2024).
Outros levantamentos recentes também evidenciam a gravidade da violência doméstica no Brasil. A Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher (Senado, 2023) revelou que três em cada dez brasileiras já sofreram violência doméstica ou familiar. O recorte racial torna o cenário ainda mais alarmante: dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) mostram que, em 2022, mais da metade das mulheres que sofreram algum tipo de violência eram negras (55%). O Sistema Nacional de Segurança Pública (Sinesp) também aponta que, entre as vítimas de violência sexual com registro de cor/raça, 62% eram pretas ou pardas. Já os dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) revelam que, entre as mulheres assassinadas em 2022, 67% eram negras. Esses números expõem a interseccionalidade entre gênero e raça, evidenciando que mulheres pretas e pardas enfrentam riscos desproporcionais em comparação às mulheres brancas (DataSenado, 2024).
A complexidade refletida nestes dados encontra um espelho na própria legislação brasileira, que buscou tipificar as múltiplas dimensões em que essa violência se manifesta.
A violência patrimonial e o controle econômico
Um avanço fundamental da Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/2006) foi reconhecer que a violência doméstica transcende a agressão física, ao tipificar também suas formas psicológica, moral, sexual e patrimonial. Dentre elas, a violência patrimonial, manifestada pelo controle de rendimentos, destruição de bens ou imposição de dependência forçada, destaca-se como um mecanismo silencioso e eficaz para aprisionar a mulher na relação abusiva.
A eficácia desse aprisionamento é traduzida em números. Uma pesquisa do Instituto DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (2024) revela que 85% das mulheres negras sem renda, vítimas de violência, permanecem com seus agressores simplesmente por não terem para onde ir. O dado escancara a convergência entre pobreza, racismo estrutural e gênero, ampliando os obstáculos à emancipação feminina (DataSenado, 2024).
A dependência financeira como combustível do ciclo de abuso
A permanência em relações violentas raramente decorre da falta de desejo de rompimento, mas sim da ausência de condições materiais para a sobrevivência, especialmente quando há filhos. Ao controlar as finanças, o agressor impõe um duplo castigo: além do medo da violência física, ele acorrenta a mulher pelo temor da miséria, negando-lhe recursos e a liberdade de escolha.
Essa vulnerabilidade, no entanto, não nasce dentro de casa, mas é alimentada por uma estrutura social desigual. A disparidade de gênero no mercado de trabalho, materializada na diferença salarial, no maior desemprego feminino e na sobrecarga de tarefas não remuneradas, cria o ecossistema perfeito para a dependência econômica. Com efeito, para além da comum dupla jornada de trabalho, segundo dados do IBGE, no final de 2024, a taxa de desocupação feminina (9,2%) era 46% maior que a masculina (6,3%). Essa barreira no mercado de trabalho é, para muitas mulheres, a corrente final que as aprisiona a um ciclo de violência, tornando a dependência econômica não uma escolha, mas uma imposição (Agência IBGE, 2024).
Quando o Estado falha em assegurar políticas eficazes de inclusão produtiva, ele se torna cúmplice na perpetuação dessa vulnerabilidade.
Autonomia financeira como direito fundamental
A ordem constitucional brasileira, fundada na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição), estabelece um conjunto de direitos e garantias que só se realizam plenamente com a autonomia individual. Tal autonomia possui uma dimensão econômica indissociável, sem a qual direitos como a liberdade e a cidadania se tornam meras formalidades. A promoção da igualdade material entre homens e mulheres (art. 5º, I, da Constituição) impõe ao Estado o dever de atuar positivamente para remover os obstáculos históricos e sociais que perpetuam a subordinação feminina, notadamente a dependência financeira.
Nesse contexto, a emancipação econômica da mulher é um imperativo para a concretização dos direitos sociais previstos no art. 6º da Carta Magna, como o trabalho e a assistência aos desamparados, e condição necessária para o enfrentamento da violência de gênero. A própria Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), ao definir a violência patrimonial como “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos” (art. 7º, IV), positiva a conexão umbilical entre controle financeiro e o ciclo de agressão.
Portanto, fomentar a independência econômica da mulher é dar efetividade ao comando constitucional que obriga o Estado a assegurar a assistência à família e a criar “mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (art. 226, § 8º, da Constituição). Trata-se de medida essencial para garantir que a mulher possa reconstruir sua vida com segurança, dignidade e, acima de tudo, liberdade real.
Estratégias de ruptura: falhas e caminhos possíveis
Apesar dos avanços normativos, os números revelam que as políticas públicas atuais ainda são insuficientes. Dados do Conselho Nacional de Justiça apontam que, apenas entre janeiro e maio de 2024, ingressaram na Justiça 380.735 processos de violência contra a mulher, sendo 318.514 referentes à violência doméstica, uma média de mais de 2.500 novos casos por dia (CNN, 2024).
Esses números evidenciam que o enfrentamento não pode se restringir à esfera penal. As atuais políticas sofrem com fragmentação institucional, insuficiência de recursos e ausência de acompanhamento contínuo das vítimas.
É preciso avançar em medidas estruturantes, como:
- Redistribuição de renda e apoio financeiro duradouro para mulheres em processo de rompimento, superando a lógica de subsídios temporários.
- Moradia digna e acessível, para que a saída do lar violento não implique desamparo ou retorno ao agressor.
- Integração sistêmica entre Judiciário, Ministério Público, Defensoria, assistência social e entidades da sociedade civil, evitando a descontinuidade no acolhimento.
- Parcerias efetivas com o setor privado, assegurando políticas de emprego e renda que privilegiem a inclusão de mulheres em situação de vulnerabilidade.
A rede de apoio social: em briga de marido e mulher se mete a colher
Durante séculos, prevaleceu o ditado popular segundo o qual “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Essa máxima, longe de ser inofensiva, legitimou o silenciamento das vítimas, tratando a violência doméstica como questão íntima. A Lei Maria da Penha rompeu com esse paradigma, reconhecendo a violência doméstica como violação de direitos humanos e questão de ordem pública.
Hoje, a resposta precisa ser inequívoca: sim, é preciso meter a colher. Família, amigos, vizinhos e a sociedade em geral têm papel fundamental no apoio à vítima, seja incentivando a denúncia, seja oferecendo suporte emocional ou material. O isolamento é uma das maiores armas do agressor; a rede de apoio social, formal ou informal, pode ser o primeiro passo para a libertação.
Considerações finais
A dependência econômica não é circunstância individual, mas um problema estrutural que sustenta o ciclo da violência doméstica. Enquanto as mulheres não tiverem garantida sua autonomia financeira, qualquer resposta jurídica será parcial e paliativa.
O desafio que se impõe à sociedade brasileira é o de compreender que a violência doméstica não é problema privado, mas sim questão coletiva e política, que demanda redistribuição de recursos, integração institucional e fortalecimento da rede de apoio comunitária.
Mais do que punir o agressor, é preciso criar condições reais para que as mulheres reconstruam suas vidas com dignidade e liberdade. E isso só será possível quando cada um de nós assumir a responsabilidade de não se calar, rompendo com o silêncio histórico que tantas vezes condenou mulheres à violência.
Referências
AGÊNCIA IBGE. PNAD Contínua Trimestral: desocupação recua em 7 das 27 UFs no terceiro trimestre de 2024. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 17 ago. 2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União, Brasília, 2006.
CNN. Justiça brasileira recebe 2,5 mil processos de violência contra a mulher por dia. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 17 ago. 2025.
DATASENADO. Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher Negra. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 17 ago. 2025.
SENADO. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 17 ago. 2025.
FBSP – Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024. São Paulo: FBSP, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 17 ago. 2025.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2022.
